terça-feira, 21 de abril de 2009

"Dia da Terra"..

Acho que não há melhor maneira de festejar este dia do que recordar São Tome..
(Apesar de ser um texto grande, acho que vale a pena ler..)


"Peixes que voam, cavalos que mergulham, pessoas com pinta e uma estrada com vida. Luís Octávio Costa dançou tarraxinha, brincou aos piratas, perdeu-se, desconcentrou-se, respirou fundo. E depois acordou


As paredes estão pintadas de cor-de-rosa e azul-bebé e foram descascadas pelo tempo. A estrada é interminável e cravejada de solavancos onde se escondem homens com espadas do comprimento de um braço, mulheres que equilibram na cabeça bacias com toneladas de roupa garrida e crianças que saem debaixo das pedras. Há peixes com asas, serpentes lentas e tímidas e cavalos brancos que saltam para a Boca do Inferno e saem a mais de quatro mil quilómetros de distância. Prova-se o melhor chocolate do mundo, pesca-se à linha, inventam-se brinquedos e dança-se como se não houvesse amanhã. São Tomé podia ser uma historia de Lewis Carrol, um país das maravilhas. É tão pequeno que há quem diga que não existe.

Para encontrar São Tome no mapa também é preciso optar entre dois comprimidos (Mephaquine ou Malarone, venha o diabo e escolha), encolher para passar por uma toca (aeroporto?) e seguir as dicas de um local, que só não é um coelho branco porque em São Tomé os ponteiros dos relógios não saem disparados. Em São Tomé os relógios, como tudo, arrastam-se ao sabor das altas temperaturas. Se à chegada estranhamos a expressão “leve-leve”, horas depois ela passa a fazer parte do nosso ritmo e dos nossos poros. Leve-leve não se explica. Leve-leve é ir fazendo. É rachar um cacau maduro (como a faixa amarela da bandeira nacional) e sorver os seus gomos com sabor a iogurte, é montar uma espada de pirata com três peças de bambu, é passar na ribeira Afonso e parar, é fazer piruetas e mortais encarpados na areia escura da praia das Sete Ondas (esconde rochas que são verdadeiras peças de ourives), é ter um “cumprimento longo” e secreto com o Albertino e aprender que o numero sete é mágico. Se o país, a ilha, o pontinho, aparecessem no globo terrestre, lá estariam sete distritos, sete cidades e sete qualidades de banana. “É um bom número para um jogador de futebol”.

São Tomé é o país imaginário onde chove sempre à hora marcada (às cinco em ponto), onde os lugares mais inóspitos têm nomes de sentimentos (Fraternidade, Esperança, Perseverança, Solidariedade, Ilusão, Caridade e Saudade), as pessoas têm nomes de descobridores, os frutos não têm nome de frutos e as plantas, com nomes de coisas, têm que vir com o respectivo manual de instruções.

O país é como a sala de cinema que ganhou o nome do poeta Marcelo da Veiga: é único e só funciona às vezes e à velocidade do arranca-não-arranca. Leve-leve. É como um maço de dobras (moeda local) que ameaça desintegrar-se de tão velho e cansado. É um país tão valioso e tão abandonado como as peças que compõe o museu da Fortaleza de S. Sebastião, a ventoinha manual, o serviço inglês, o Rafael Bordalho Pinheiro, os instrumentos de vudu…

Como em qualquer conto de fadas, também São Tomé tem as suas pragas medonhas. Uma é a malária, que vitimiza indiscriminadamente e afasta do arquipélago investidores e turistas. A outra é a sida, para a qual, como antídoto, não há mais do que algumas pinturas murais e preservativos gratuitos nos locais mais civilizados da ilha. A terceira é a corrupção, que delapida os recursos de todos em nome de uns poucos.

Na Roça Rio do Ouro, José Francisco – “Equador”, de Miguel Sousa Tavares, bem preso debaixo do braço enquanto recorda as visitas de estudo da Mocidade Portuguesa – descreve a sua terra como “um verde muito complicado”, um santuário que os portugueses descobriram (ao que se julga) inabitado em 1470-71 e que só largaram a 12 de Julho de 1975, após uma longa historia de colonização. José Francisco é um dos muitos que encolhe os ombros quando se fala de São Tome na sua versão galinha dos ovos de ouro: fértil primeiro; depois esventrada.

À vista, destapadas, ficaram as roças, autênticos castelos com vista privilegiada sobre o Atlântico, assim como a resistente língua portuguesa e a arquitectura colonial, maltratada como uma bola de trapos, como os destroços na baía a que foi dado o nome da fazendeira Ana Chaves.

Descobrir São Tome ainda é perder-se em São Tomé. Na floresta primitiva Obô, nos cheiros intensos do mercado, na fervilhante postura de táxis ferrugentos e amarelos ou no Estádio Municipal 12 de Julho durante um delirante Sporting Praia Cruz- Orquel del Rei. Desconcentramo-nos à sombra de um castanheiro da Índia com uma cerveja Crioula à mão e nas vielas escuras que conduzem à discoteca Dolores, “local de diversão, não de confusão” onde reúnam os ritmos parados da “tarraxinha” (“nem ar circula”) e os mais frenéticos kuduristas (é perguntar pelo Márcio Vera Cruz). E perdemo-nos com as pessoas, as verdadeiras atracões de São Tomé, os miúdos com pose de estrelas de cinema (não pode haver um genérico sem o nome Eliseu Burindá), os adeptos apaixonados, o táxi do Vává, os tecidos da Nery, o safu assado da Precisosa, as teorias do Moisés Lima e do Américo, as preces de Nancy (30 Avé-Marias para o sol não desaparecer, a técnica apurada de Adeler Euclides (o mais ágil a abrir amêndoas e a comer compota açucarinha) e a lábia de Moreno Simpático Zeferino, 17 anos, surfista, cozinheiro, caçador, futebolista, 12 palmadas aos seis anos no primeiro dia de aulas por andar atrás das meninas e uma vontade gigante de ser o futuro primeiro ministro de São Tomé.

São Tomé é como o vinho de palma a fermentar numa garrafa de plástico cravada numa palmeira: de manha é doce, agora é forte. É com a relva, curta e fofa. É como o Palácio do Orgulho, como a grade das sanzalas a anunciar as roças. É um puzzle tão grande como o dos quilos de roupa a corar na berma da estrada. É como percorrer as prateleiras do supermercado à luz de uma lanterna. É como envergonhar a folha “não-me-toques” ou descobrir o segredo da árvore das patacas. É confundir as flores com as cortinas rosa choque das barracas. São as fontes a cada cem metros, as petisqueiras a cada cinquenta, os caçadores de macacos e morcegos e a lagoa que engoliu a Amélia, perdida de amores. É negociar uma moto vermelha cromada e estimada para dar a volta à ilha (“400 mil, 300 mil, ok agora a serio”), reabastecer nas Almas, traçar o percurso Loja das Maravilhas-Pneus de Ocasião-Quinta Amor ao Trabalho. È descer a avenida das Nações Unidas, virar à esquerda na Independência e espreguiçar-se na praia de Micondo. É terminar o dia sem saber bem o que significa “stress kê kua”. E despedir-se do Albertino com um cumprimento longo e secreto."


2 comentários:

Anônimo disse...

teresa, está muito bom. Foste tu que escreveste? Adorei! Vou adoptar quando quiser reordar/falar de São Tomé.
raquel

. disse...

Não fui eu que escrevi, estava publicado numa revista e achei piada, porque nesse mesmo dia estava a publicar um texto sobre para São Tomé..

O texto está muito bom..

Obrigada pela visita!